“Nossas cidades são patriarcados escritos na pedra, no tijolo, no vidro e no concreto.” A frase da geógrafa feminista britânica Jane Darke escancara um fato incontestável: o desenvolvimento urbano em todo o globo sempre foi obra de homens. Nos postos executivos, “a maioria faz escolhas de política econômica ao planejamento de moradias, de localização das escolas aos assentos de ônibus, sem tomar conhecimento de como essas decisões afetam as mulheres, muito menos se preocupar com isso”, afirma a canadense Leslie Kern, geógrafa e doutora em estudos femininos pela Universidade de York.
No livro Cidade Feminista — A Luta pelo Espaço em um Mundo Desenhado por Homens (Oficina Raquel, 256 págs.), ela esmiúça os efeitos do domínio masculino em uma área que atinge em cheio o sexo oposto — ainda que em doses distintas quando comparamos brancas e negras periféricas, por exemplo.
Segundo a autora, muitas das barreiras (físicas, sociais, econômicas e simbólicas) são invisíveis aos homens porque eles raramente as encontram. “Em geral, eles não sentem medo de ruas mal iluminadas, não comemoram calçadas acessíveis para carrinho de bebê, não temem mobiliário urbano que pode esconder agressores”, complementa Paula Manoela dos Santos, gerente de mobilidade ativa do instituto WRI Brasil. “São detalhes só percebidos por quem sente os problemas na pele”, diz.
Evitar certos locais, horários, saídas solitárias e até alguns tipos de roupa integra o que Leslie chama de vigilância constante, que ocupa a mente feminina e restringe seu mapa. Não por acaso, a aclamada ativista social Jane Jacobs acreditava que a capacidade de se sentir segura sozinha entre milhões de estranhos consiste no marcador final da habitabilidade de um lugar.
“O ambiente urbano impõe certos comportamentos às mulheres, principalmente em função do assédio. A novidade é que elas não aceitam mais isso, querem participar das decisões e isso é muito transformador”, avalia Paula Freire Santoro, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde coordena o Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade).
Olhar inclusivo
Diariamente, adultas e meninas em todo o planeta dedicam 12,5 bilhões de horas ao cuidado não remunerado: afazeres domésticos, compras para a casa e a família, a educação das crianças e a saúde de idosos e pessoas com necessidades especiais. Os dados constam do relatório Tempo de Cuidar, da organização internacional Oxfam. No Brasil, 90% dessa atividade é feita pelas famílias, e as mulheres respondem por 85% desse total.
No entanto, a orientação das cidades foca no homem que sai de manhã para trabalhar e volta à noite. “Como essa economia do cuidado se traduz, ou não, no urbanismo? As boas creches e escolas, os parques, as praças e outros espaços de suporte às mulheres deveriam estar descentralizados e acessíveis”, defende Elisa Monçores, doutora em economia, pesquisadora de gênero e trabalho, e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Na prática, os desafios cotidianos aguçam a percepção das habitantes da urbe sobre locais que carecem de melhorias. “A gente sabe onde estão os buracos perigosos para as crianças de bicicleta, qual rua alaga ou sofre com esgoto, que lugar não tem luz à noite nem calçada para cadeirante ou faixa de pedestre para idoso”, fala Vilma Martins, líder comunitária na União de Vila Nova, extremo leste de São Paulo.
“Se nos ouvirem, melhoraremos não só a nossa a vida, mas a de todo mundo”, defende ela, que integra o Coletivo Mulheres do GAU (Grupo de Agricultura Urbana), responsável por transformar um terreno que acumulava entulho em um viveiro-escola, referência no bairro.
Para a arquiteta Patricia Anastassiadis, a diversidade de pontos de vista também aprimora o mercado imobiliário. “Um olhar feminino, mais amoroso, faz diferença, confere mais suavidade e soluções práticas efetivas. Já recebi muito projeto de arquitetura que só pensava na casca, não contemplava nada do morar, do conforto, de uma escala mais humana”, relata, reforçando que não se trata de ter ranço dos homens, mas de atuar junto com eles, de igual para igual.
Mobilidade urbana
A jornada múltipla explica por que as mulheres se movem de maneira diferente na malha urbana. “Elas realizam deslocamentos poligonais, mais densos e complexos. Deixam um filho na creche, o mais velho na escola, passam na farmácia e vão trabalhar. Na volta, param no mercado, pegamos filhos e caminham para casa”, exemplifica a urbanista Leticia Sabino, fundadora e diretora da ONG Sampa Pé. Por isso, andam mais e constituem a maioria dos usuários do transporte público (65%dos pagantes no Brasil são mulheres das classes C, D e E, segundo o Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento).
Sem uma perspectiva de gênero, o resultado disso desemboca no que a urbanista e planejadora de transporte em Nova York Sarah Kaufman batizou de “imposto cor-de-rosa”. Veja só: um estudo na metrópole americana constatou que mulheres com crianças gastam até US$ 76 a mais por mês em condução. “É preciso trazer o olhar delas para o traçado técnico das rotas e viabilizar viagens de vários destinos sem pagamentos extras. É algo que pode ser implantado em todas as cidades”, sugere Cristina Albuquerque, gerente de mobilidade urbana do WRI Brasil.
Viena observa isso há décadas. Em 1999, consultou as cidadãs sobre seus trajetos e buscou remodelar áreas para facilitar a mobilidade, melhorar a acessibilidade de pedestres e criar conjuntos habitacionais dotados de creches, serviços de saúde e atendidos por transporte público.
Vigilância comunitária
Em 2019, um levantamento do Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva divulgado no Guia para Cidades Mais Inclusivas, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, mostrou que 97% das brasileiras já sofreram importunação sexual. As ruas (para 24%) e o transporte público (para 46%) são onde se sentem mais vulneráveis. Como o design urbano pode ajudar a reduzir esses indicadores?
A ONG Sampa Pé realiza caminhadas de auditoria de segurança com moradoras em todo o país, inspiradas em um modelo já consolidado no Canadá. A análise mostra que, para elas, requalificar as cidades faz mais sentido do que aumentar o policiamento.
Menos muros intermináveis e mais olhos nas ruas para aumentar a sensação de segurança. “Ver e ser vista é importante. Fachadas transparentes ou ativas (com bares, restaurantes e outros serviços), dão visibilidade entre o espaço público e o privado e vitalidade às calçadas em diferentes horários”, analisa Leticia Sabino.
Estar em ambientes com pessoas conhecidas forma um senso de comunidade e de vigilância que também conta, e muito, assim como dispor de mobiliário urbano acolhedor, como bancos e pontos de sombra para pausas e descansos rápidos.
Nos ônibus, diversos municípios brasileiros (entre eles, Fortaleza, Curitiba, Porto Alegre e vários no estado de São Paulo) implementaram a Parada Segura, iniciativa que garante às passageiras o direito de desembarcar fora dos pontos pré-fixados, especialmente à noite, para encurtar caminhadas por trechos que consideram perigosos.
Alguns definiram vagões “cor-de-rosa” exclusivos no metrô, a fim de coibir abusos durante as viagens. “É uma ação pontual, em geral, bem aceita, mas que apenas segrega, não muda o comportamento dos homens”, pondera Paula Manoela, do WRI Brasil.
Em Fortaleza, desde 2019 o aplicativo Nina recebe denúncias de assédio nos coletivos. Entre março e setembro de 2020 computou 2.300 relatos, encaminhados à Casa da Mulher Brasileira, que reúne órgãos da polícia, Ministério Público, assistência psicológica e secretarias municipais. “A ideia é reduzir a impunidade e montar uma plataforma de dados que aprimore o planejamento urbano”, afirma Simony César, fundadora e CEO da startup. “Saber os horários e locais desses crimes embasa a intervenção. Se ocorrem em veículos e terminais superlotados, este é o aspecto a atacar”, completa.
Apoio mútuo
Com tantos desafios, as mulheres improvisam arranjos e soluções para aquilo que o poder público não alcança. “É a vizinha que olha da filha da amiga ou leva para a escola”, exemplifica a economista Elisa Monçores. Promover pequenas comunidades dentro da urbe é o que elas fazem o tempo todo como estratégia de sobrevivência. Uma cuida da outra, como pode.
“É um pouco o discurso da ativista boliviana Julieta Paredes, que fala em feminismo comunitário, um conceito que, aliás, inclui os homens”, lembra a arquiteta Lilian Lubochinski, pesquisadora de cohousings (espécie de vilas compartilhadas) e outras estruturas colaborativas inspiradas em aldeias de povos originários. “Eles possuem uma noção de cuidado distribuído, um olhar sistêmico que dá qualidade ao espaço comum, algo que precisamos resgatar em prol de uma cultura regenerativa”, acredita.
A ideia alinha-se ao conceito da “cidade de 15 minutos”, defendida atualmente pela prefeita reeleita de Paris, Anne Hidalgo, e já abraçada por outras cidades como Barcelona, Detroit e Ottawa. Desfrutar de todos os serviços básicos, trabalho e lazer a uma distância de um quarto de hora a pé da residência corresponde à visão de cidade que toda mãe gostaria de construir, conforme escreve a geógrafa Leslie Kern.
Por fim, aumentar a participação feminina nos movimentos sociais e na política é fundamental. “O fato de as mulheres líderes de governos terem tido mais sucesso na gestão da pandemia diz muito”, afirma Cristina Albuquerque, do WRI. “Precisamos de mais prefeitas, vereadoras, urbanistas. Corri 18 estados do país e só encontrei uma secretária de transportes. É mais difícil inserir pautas feministas onde só existem homens tomando decisões”, lamenta Simony, do app Nina. A líder comunitária Vilma é otimista: “Já obtivemos conquistas unindo forças com outras lutas sociais, de negros, LGBTQIA+, indígenas. Esse mundo que nos poda ainda vai entender que só queremos fazer todos florescerem.”
Via Caos Planejado.